Termina, com final feliz, a novela quanto à atuação dos médicos do Trabalho
Marcia Bandini – médica especialista e professora em Medicina do Trabalho, com doutorado pela FMUSP
marciabandini@gmail.com
Finalmente acabou! A certidão de trânsito em julgado (ID nº 3a7b080), publicada em 02 de outubro de 2020, encerra uma das mais longas novelas que já acompanhei. Uma mácula para a Medicina do Trabalho porque o judiciário sentencia o CFM (Conselho Federal de Medicina) a abster-se de publicar pareceres e resoluções que infrinjam o direito dos trabalhadores ao sigilo e confidencialidade de informações contidas em prontuário médico. Neste artigo, faço uma revisão crítica desse processo e analiso seus impactos para trabalhadores, empregadores, médicos do Trabalho, peritos judiciais e assistentes técnicos, dentre outros.
A novela começou em fevereiro de 2016, quando um médico do Trabalho consultou o CFM “sobre a utilização de dados de prontuário médico sem anuência do funcionário:
1) nos casos de contestação de NTEP (Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário), na pessoa do médico perito;
2) nos casos de instrução de perícia judicial, na pessoa do colega assistente técnico;
3) em ambos os casos, ao jurídico da empresa se assim solicitado”.
Corretamente, foi publicado Parecer CFM nº 13/2016 orientando que “o médico estará impedido de fornecer dados do prontuário médico ou ficha médica sem consentimento do paciente (funcionário), exceto para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa”. Acompanhei o caso sem grande interesse porque me pareceu desnecessário explicar o óbvio, mas pensei que o documento seria útil para defender médicos que, muitas vezes, são pressionados a revelar informações sigilosas.
REAÇÃO NEGATIVA
Fazer a coisa certa não é fácil. Sempre existe uma sombra pairando sobre nós. “Bem-intencionados” não faltam. É o empregador “preocupado” em saber quem está doente ou não, depois de uma campanha de exames periódicos. O advogado desesperado com o prazo de um processo e só precisa dar uma “olhadinha” em um prontuário. O gerente que arquiva cópias de prontuários médicos no departamento pessoal, “por segurança”. O encarregado que pede para “ver no INSS” como reverter um B91 porque seu funcionário “faz bico no fim de semana”. O diretor jurídico que pede vistas em prontuários mé-dicos inativos por conta de uma Ação Civil Pública, exatamente quando você tira férias. Essas são apenas algumas das muitas histórias que médicos do Trabalho têm para contar. Por isso, gostei do Parecer CFM nº 13/2016 e fiquei surpresa com a reação por ele causada.
Ouvi muitas queixas de médicos. A mais frequente era “Como vou contestar NTEP agora?”. Orientava os colegas, esclarecendo que a contestação de NTEP se faz com a comprovação de ausência de risco ocupacional relacionado àquela patologia; ou demonstrando-se que as medidas de proteção são adequadas; ou com dados epidemiológicos. Para isso, é possível usar informações não confidenciais como o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais, a Análise Ergonômica do Trabalho, o relatório do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional. Recomendava sempre considerar o trabalho como fator contributivo, agravador ou desencadeante de um adoecimento. Finalmente, ressaltava a importância da avaliação médica prévia ao afastamento superior a 15 dias, para elaborar relatório detalhado para a perícia médica do INSS. No entanto, a realidade brasileira é que muitos empregadores ainda contratam exames ocupacionais avulsos, nem sempre o médico conhece as condições de trabalho, não há gestão dos afastamentos em tempo real, e a contestação de NTEP é reativa. Neste cenário, ter acesso a prontuários médicos pode ser um atalho interessante para alguns profissionais, mas, certamente, não é sustentável como os fatos a seguir demonstraram.
ESTOPIM
Pouco menos de um ano depois, consulta semelhante foi enviada ao CFM, desta vez para outra Câmara Técnica. Ao invés de usar o parecer já existente, nova ementa foi publicada: “o médico do Trabalho não está impedido de fundamentar a contestação ao NTEP (Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário) com critérios científicos e dados do prontuário do trabalhador, especificamente atinente ao caso” (Parecer nº 03/2017, atualmente revogado). Era o estopim que faltava. O CFM passou anos respondendo judicialmente a esta mudança de posicionamento e a Anamt (Associação Nacional de Medicina do Trabalho) se dividiu entre os que defendiam a confidencialidade dos prontuários médicos de trabalhadores, e aqueles que defendiam o uso de informações sem consentimento do trabalhador para contestação de NTEP. A ementa de 2017 foi incorporada no artigo 9º da Resolução CFM 2.183/2018, em um contexto bastante tumultuado. Representantes dos trabalhadores denunciaram o CFM ao Ministério Público do Trabalho que, por sua vez, entrou com duas Ações Civis Públicas (processos nº 0001624-78.2017.5.10.0004 e nº 000571-49.2019.5.10.0018). Como pano de fundo deste imbróglio jurídico inédito, o cenário macropolítico do País inflamou ainda mais os ânimos. Narrativas distorcidas ocuparam as redes sociais, a civilidade foi deixada de lado, e a polarização ideológica cruzou os limites do razoável. O conflito capital-trabalho se revelou de maneira cruenta e cruel. No final, o Parecer nº 03/2017 e o artigo 9º da Resolução nº 2.183 foram revogados por decisão judicial.
No quadro ‘Esclarecendo entendimentos equivocados’, resumo algumas das ‘pérolas’ que ouvi e apresento propostas para nossos leitores.
O QUE FAZER
E o que fazer, então? Sem a pretensão de ter todas as respostas, mas com a experiência de quem acompanhou de perto esta novela por quase quatro anos, deixo algumas reflexões para médicos, trabalhadores e empregadores. Que os limites e as possibilidades de atuação do médico do Trabalho sejam bem estabelecidos. Muito pode ser feito, sem ferir os preceitos éticos, com benefícios para trabalhadores e empregadores, na medida em que médicos do Trabalho atuem na melhoria das condições de trabalho, na prevenção dos agravos relacionados ao trabalho e na promoção da saúde. Com isso, se mantém a capacidade de trabalhar e produzir. Médicos do Trabalho precisam compreender melhor seu papel e responsabilidades, atuando com profissionalismo frente aos inúmeros desafios que a especialidade impõe. Quando necessários, enfrentamentos devem ser conduzidos com ética, embasamento científico e respeito aos direitos e deveres de cada um.
Finalmente, não se pode esquecer que quando um paciente-trabalhador relata ao médico coisas que provavelmente não diria a mais ninguém, o faz na confiança de que o profissional não revelará os segredos compartilhados e que usará as informações em benefício de sua saúde, não o contrário. Nada justifica desrespeitar esses princípios universais.
Diante desta longa novela que acompanhamos, espero que tenhamos aprendido algo com tudo isso. Mais do que o respeito às regras, que fique o respeito pelo ser humano e pela Medicina do Trabalho, esta linda especialidade que abraçamos com fervor e amor, apesar de todas as dificuldades cotidianas que enfrentamos.
Para saber mais:
• Nota da autora: trânsito em julgado refere-se à decisão ou acórdão judicial da qual não se pode mais recorrer.
• O Parecer nº 13/2016 está disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2016/13.
Ref.: Revista Proteção, Saúde e Segurança do Trabalho (Digital): Sigilo garantido. Editora Proteção Publicações. Ed. 348, p. 14, novembro/2020.