Diretor executivo da Animaseg defende política de governo em relação à produção nacional de EPIs
Entrevista à jornalista Daniela Bossle
É difícil falar na entidade que representa as empresas de material de segurança e proteção ao trabalho no Brasil, a Animaseg, sem lembrar imediatamente do engenheiro Raul Casanova Junior, possivelmente pelo fato dele estar há 27 anos como diretor executivo da entidade, na linha de frente daquela que reúne a maior representação de fabricantes de Equipamentos de Proteção Individual e Coletiva da América Latina.
Quando a pandemia estourou no País, o setor de EPIs passou a ser o centro das discussões e de uma série de problemas gerados, na visão de Raul, por desinformação dos governos federal, estaduais, municipais, da mídia e pelo excesso de burocracia. O setor médico-hospitalar não conseguia adquirir máscaras PFF2, luvas e vestimentas suficientes vendo-se desprotegido em um momento crucial. Nunca se falou tanto sobre aquele que é considerado a “última barreira” de proteção do risco aos trabalhadores. “Hoje, há uma conscientização muito maior de cada trabalhador, de cada pessoa em todo o planeta, de que depois que todos os sistemas de gestão falharem, como falharam no caso do coronavírus, a única defesa que estes têm do risco é o EPI”, aponta.
Com 65 anos, nascido e residente em São Paulo, graduado em Engenharia Eletrônica e Administração de Empresas, ele exerce ainda a direção executiva da Abraseg, entidade que congrega os distribuidores e importadores dos equipamentos de segurança e proteção ao trabalho e a superintendência do CB-32 da ABNT, comitê específico para a criação de normas técnicas brasileiras para a área de EPIs.
Nos meses iniciais da pandemia a informação era de que faltavam EPIs no mercado, principalmente para os profissionais da saúde, gerando até um certo pânico. Quais foram os problemas? Acredito que um dos principais problemas foi a falta de conhecimento de todos os níveis de governo e da mídia sobre o tema, que induziram toda a população a adquirir produtos que deveriam ser destinados exclusivamente para os profissionais de saúde e para atividades específicas. Se de um lado a produção nacional tinha a capacidade necessária para atender o aumento de demanda gerado pela Covid-19 para esses profissionais, evidentemente, não tinha capacidade para atender toda a população. Outro problema enfrentado durante a pandemia foi o excesso de burocracia. A área hospitalar tem vários órgãos regulamentadores para os EPIs. As máscaras PFF2, por exemplo, têm três órgãos regulamentadores: o Inmetro, a Secretaria do Trabalho e a Anvisa. Em fevereiro deste ano somente três empresas tinham o registro da Anvisa para fornecer para a área médico-hospitalar. As demais empresas não se interessavam pelo setor, mas tinham o Certificado de Conformidade do Inmetro e o CA da Secretaria do Trabalho. Quando a Anvisa liberou de terem o seu registro, as empresas não tinham sistema logístico de distribuição adequado.
Em função desta falta de EPIs, o governo liberou o imposto para a importação destes itens para que se buscasse fora o que não era encontrado no mercado interno. Isto resolveu o problema? Entendo que os governos federal, estadual e municipal, além do Congresso, não conhecendo o tema e induzidos pela mídia, tomaram várias medidas, no mínimo equivocadas e em alguns casos prejudiciais às metas propostas e ao próprio País. Entre as medidas houve o confisco de produtos em fabricantes e em aeroportos; a proibição da exportação; restrições à produção e à locomoção dos trabalhadores atuantes na área, não a destacando como atividade essencial; a indução do desenvolvimento de novos fabricantes sem orientação técnica básica e, ainda, a liberação do imposto de importação. Sobre essa última medida específica, não se obteve resultado pois não era o valor do imposto de importação o problema, mas a explosão da demanda mundial por EPIs.
A situação poderia ter sido resolvida de outra forma? Conforme nosso entendimento, sim, conversando com o setor específico, verificando quais os problemas enfrentados pelas empresas fabricantes e fornecedores, tomando conhecimento da finalidade dos EPIs e divulgando a respeito do assunto para a população.
Qual era o panorama do consumo de Equipamentos de Proteção Individual no Brasil até estourar a pandemia? Como o setor de EPIs é muito atrelado à situação da economia do País como um todo, ele estava em um período de plena recuperação, depois da profunda crise que o Brasil enfrentou em 2015 e 2016. Em 2017 e 2018 houve uma estabilização em níveis ainda inferiores aos primeiros anos da década e em 2019 as empresas começavam a se recuperar lentamente.
E hoje como está o consumo do EPI no Brasil? Você acha que de certa forma o estado de calamidade pública provocado pelo novo coronavírus contribuiu para impulsionar o seu uso nos ambientes de trabalho? Durante os primeiros seis meses da pandemia tivemos dois cenários completamente diferentes. O primeiro das empresas que já produziam EPIs para a área médico-hospitalar, e que tiveram um aumento de demanda muito forte, e o segundo das empresas que não forneciam para essa área, com uma redução de 40 a 50% de sua demanda. Neste momento, com a volta da movimentação da economia, os dois cenários começam a se estabilizar, o primeiro pelo aumento da oferta e o aprendizado da população, e o segundo pela volta da produção nas empresas e no comércio. Acreditamos que a estabilização agora será em níveis mais altos do que os anteriores, pois nunca os EPIs tiveram a visibilidade e sua importância tão enaltecida em todos os sentidos como neste período. Hoje, há uma conscientização muito maior de cada trabalhador, de cada pessoa em todo o planeta, que depois de todos os sistemas de gestão falharem, como falharam, a única defesa que estes têm do risco é o EPI.
Qual a capacidade de produção nacional hoje especialmente com relação às máscaras PFF2, luvas e vestimentas para a proteção dos profissionais mais diretamente expostos ao novo coronavírus? Estão conseguindo atender à demanda interna? E quanto ao mercado externo? Quanto aos respiradores PFF2 – ou máscaras N95 utilizando a denominação americana divulgada pela grande mídia -, a capacidade de fornecimento, em fevereiro de 2020, era de cerca de 15 milhões de peças por mês, enquanto o consumo da área médico-hospitalar era de 1 a 1,5 milhão de peças por mês. Hoje, essa capacidade atingiu 45 milhões de peças por mês, fabricadas no Brasil e o mercado está plenamente abastecido começando a ter excedentes de produção. Quanto às luvas de procedimentos e vestimentas são EPIs que dependem da importação, mesmo antes da pandemia, devido à política brasileira, nos últimos 20 anos, de não proteger a produção nacional. A maioria das luvas são de látex natural/ borracha (77%), produto que o País já foi o maior exportador mundial e que hoje, até os poucos fabricantes nacionais importam a matéria-prima. O fornecimento durante a pandemia chegou ao seu limite, mas não chegou a faltar. Hoje está regularizado, mas o custo internacional aumentou. Sobre as vestimentas, preciso dizer que esta é uma denominação genérica para vários tipos de EPIs, cada vestimenta com sua finalidade específica de proteção. Parte delas são fabricadas e utilizam matéria-prima produzida no Brasil. Outras, específicas para áreas onde o risco de contaminação viral é grande, como a área hospitalar, a matéria-prima é importada e a confecção também em sua maioria é realizada fora do País. Embora a confecção pudesse ser realizada no Brasil, não fossem as dificuldades econômicas. Mas hoje já se estuda a possibilidade de confeccioná-las em território nacional. As vestimentas específicas para o setor médico-hospitalar tiveram problemas semelhantes de fornecimento às máscaras PFF de um lado e às luvas de outro, mas no decorrer dos meses, o aprendizado sobre a importância de se ter um EPI adequado para cada risco, fez com que houvesse uma tendência de regularização, mesmo a preços mais altos.
Você mencionou em seu blog no site da Proteção que os EPIs têm sido menosprezados pelos especialistas e vistos como última barreira a ser usada entre o trabalhador e o risco e de que esta visão mudou com a pandemia. O senhor pode explicar melhor? O EPI realmente é a última barreira entre o trabalhador e o acidente. Minha crítica é o foco desses que ignoram a realidade brasileira e pregam em artigos e na própria legislação uma proteção ao trabalhador que se aplica, na prática, a somente uma pequena quantidade de grandes empresas, deixando a esmagadora maioria dos trabalhadores brasileiros sem orientação. São publicados livros, são formados doutores e quando surge a pandemia, e se constata que os sistemas de gestão do mundo inteiro falharam, a população e os trabalhadores não têm o conhecimento básico sobre a utilização e as limitações dos EPIs. E pior, são poucos profissionais a orientá-los, geralmente os próprios fabricantes dos equipamentos. A conclusão é de que a política adotada até agora não teve como foco a proteção das pessoas. Espero que depois desta lição, provocada pela pandemia, os trabalhadores e suas famílias tenham se conscientizado que precisam se proteger e que não estarão protegidos por teorias. Precisam ter os EPIs adequados aos riscos sabendo sobre suas aplicações e limitações, porque em mais de 80% dos casos, eles terão somente esta última barreira para protegê-los. E talvez os especialistas passem a estudar com maior atenção a última barreira e não mais menosprezá-la como na maioria das vezes.
Com a pandemia, os eventos e reuniões virtuais são uma tendência. A Animaseg realizou em agosto sua primeira rodada de negócios virtual voltada para o setor hospitalar. Como foi esta experiência? Há perspectivas de seguir neste formato? Estamos entrando em um novo tempo em que os preconceitos que tínhamos diante da tecnologia caíram, não por nossa vontade, mas por necessidade. Estamos descobrindo que a nova realidade pode ser muito mais eficaz e barata. Um exemplo disso são as reuniões virtuais, que hoje todos estão realizando com a participação de um número maior de pessoas, sem qualquer restrição de tempo ou custo de deslocamento e com uma eficácia incomparável, pois as reuniões são muito mais rápidas e objetivas. Diante desse quadro e utilizando as várias tecnologias disponíveis realizamos, com muito sucesso, em agosto, nosso primeiro Encontro de Negócios – Virtual, colocando 14 fornecedores de EPIs em contato com 12 compradores da área hospitalar. Foi uma experiência nova para todos os envolvidos, tanto fornecedores e compradores, como para nós organizadores. Precisamos aprender uma série de coisas sobre a duração das reuniões, a agilidade na troca de salas, o acompanhamento das reuniões, entre outras questões. Mas já decidimos que independentemente da pandemia, daremos continuidade a essa iniciativa, tanto com eventos nacionais, como em nosso projeto de exportação Brazilian Safety. Estamos programando, ainda para este ano, um evento no Brasil com uma área específica e, pelo menos, mais dois eventos internacionais.
Como está o projeto Brazilian Safety liderado pela Animaseg para a exportação de EPIs? Acabamos de assinar, no último dia 2 de setembro, um novo convênio com a Apex-Brasil para os próximos dois anos. Este projeto que denominamos Brazilian Safety vem sendo desenvolvido, desde o início desta década e tem como foco principal, o aumento das exportações brasileiras de EPI para a América Latina, embora tenha gerado oportunidades também em outras regiões. Sempre em parceria com a Apex-Brasil, com quem já firmamos vários convênios desde 2011, temos 55 empresas brasileiras participando do projeto e já realizamos muitos eventos de promoção comercial, como 17 participações em feiras internacionais na Colômbia, Chile, México, Cuba e até na Alemanha. Foram três missões prospectivas e exploratórias, 14 rodadas de negócios (tanto no Brasil como no exterior), além de termos publicado também 14 edições de uma revista voltada para o setor de Saúde e Segurança do Trabalho em espanhol. Neste novo convênio, que agora assinamos, os focos principais são principalmente Colômbia, Peru, Equador, Chile, Panamá e Bolívia para abertura do mercado e Paraguai e Uruguai para manutenção. E para tanto, já estão programadas feiras e rodadas de negócios nesses países, a princípio de forma presencial, mas por enquanto, estamos criando formas de dar continuidade virtualmente. Por exemplo, em setembro, agora, estamos participando de Feira Virtual na Colômbia e realizaremos ainda em 2020, duas rodadas de negócios virtuais. No ano que vem participaremos com um estande na feira internacional A+A em novembro, na Alemanha, como parte da nossa estratégia.
Há muitos anos você é o superintendente do CB-32 da ABNT que tem sua sede na própria Animaseg. Qual a importância deste trabalho de criação de normas para o setor de EPIs e também para o mercado? Quantas e quais são as comissões hoje em atividade? É um trabalho essencial, que iniciamos em 1996, quando a Animaseg propôs, eaABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) concordou em criar um comitê específico para a área de EPIs, com o intuito de agilizar a criação de normas técnicas brasileiras, as NBRs, para estes equipamentos. Essas normas técnicas são a base para que os órgãos regulamentadores possam exigir a manutenção da qualidade do produto que é oferecido ao trabalhador. Durante esses anos, no CB-32, foram criadas várias Comissões de Estudo para cada tipo de EPI, formadas pelos maiores especialistas nesses equipamentos provenientes de empresas fabricantes e importadoras, laboratórios, consumidores, OCPs, dentre outros. Estes comitês se transformaram no centro de conhecimento específico sobre cada EPI e em fóruns de discussão sobre eles. Hoje temos 20 Comissões de Estudos sendo cinco de Trabalho em Altura, cinco de Vestimentas, três de Luvas, duas de Proteção Respiratória, uma de Proteção Auditiva, uma de Calçados, uma de Capacetes de Segurança, uma de Cremes Protetores, uma de Óculos e Protetor Facial. Além destas há ainda cinco Comissões de Estudos Especiais em que quatro são na área de Bombeiros/Incêndio e uma de Chuveiro e Lava-Olhos. Mantemos em nosso acervo e publicamos até o momento 63 normas técnicas, que são acompanhadas e atualizadas periodicamente. Fui secretário da ABNT/CB-32 desde sua fundação, em 1996 até 2012, quando fui eleito seu superintendente, cargo que ocupo até hoje.
De que forma vocês procuram levar informações técnicas para o setor de EPIs? Além de divulgarmos as normas, através dos meios da própria ABNT, criamos publicações com o objetivo de ampliar o conhecimento das normas técnicas a um número maior de profissionais. São as Coletâneas de Normas e Normas Patrocinadas, que podem ser obtidas junto à ABNT, além de uma série que denominamos Normas Ilustradas, que visa simplificar o seu entendimento. Esta série ilustrada pode ser acessada em meio digital no site da Animaseg e baixada em pdf.
O CA (Certificado de Aprovação) dos EPIs chegou a ser extinto no final de 2019 dentro do chamado Contrato Verde e Amarelo, mas com a caducidade da Medida Provisória, voltou a ser obrigatório. Isto gerou muita desinformação no mercado. Qual a orientação hoje? Hoje, as regras estão sendo ditadas pela Portaria 11.437 de 6 de maio e nossa orientação é de que todos devem segui-la. Esta, dentre vários ditames, define que até o dia 6 de novembro de 2020 os EPIs podem ser adquiridos, mesmo sem o CA, mas têm que apresentar o Certificado de Conformidade ou o Laudo de Ensaio para serem comercializados ou utilizados, oferecendo desta forma um prazo tanto para o governo como para as empresas obterem seus CAs após o período de cinco meses. Ou seja, entre 11 de novembro de 2019 a 20 de abril de 2020 quando o CA havia sido extinto. Com a extinção do CA, criamos o Registro Animaseg de EPIs, visando dar continuidade à organização do setor. Só que com o retorno do CA, o RA, da forma como foi idealizado, deixou de ser necessário e a entidade decidiu fazer uma reestruturação focando mais na qualidade, mas este processo ainda está em estudo.
Você gostaria de acrescentar mais algum comentário? Sim, gostaria de reforçar sobre as propostas da Animaseg para o futuro do setor que objetivam transformar os EPIs em produtos estratégicos para o País. Para isso vamos pleitear um planejamento governamental para a indústria do setor com uma política fiscal específica, o oferecimento de linhas de financiamento, a manutenção da estrutura de matérias-primas e extensão dos benefícios a elas, o incentivo à formação de clusters com benefícios para competir em pé de igualdade no mercado global e, por fim, a definição de exigências técnicas e sociais para a entrada de produtos estrangeiros equivalentes às impostas para as empresas nacionais – como normas técnicas, impostos, condições de trabalho, direitos civis, exigências ambientais entre outros critérios hoje exigidos das nossas empresas de equipamentos de proteção.
Ref.: Revista Proteção, Saúde e Segurança do Trabalho (Digital): Ação Estratégica. Editora Proteção Publicações. Ed. 346, p. 10, outubro/2020.