O assédio é apenas um sintoma
Além de prevenir e combater a prática é preciso identificar as condições ambientais que contribuem para o seu surgimento
O assédio moral na empresa vem se tornando cada vez mais conhecido e comentado. Quais são as principais características desta prática?
O assédio moral no ambiente de trabalho é uma prática que, infelizmente, tem sido recorrente em diversas empresas ao redor do mundo. A palavra assédio tem origem no latim obsidium, que significa cerco ou sítio. Originalmente, o termo estava relacionado a situações de cerco militar, onde um exército cercava uma fortificação ou cidade, impedindo a entrada e saída de pessoas e recursos, com o objetivo de forçar a rendição do inimigo. Com o tempo, o uso da palavra evoluiu e passou a ser aplicado em contextos mais amplos, referindo-se, hodiernamente, a qualquer forma de pressão, perseguição ou importunação. A noção de assédio moral se refinou, suas fronteiras – indiscutivelmente articuladas em torno das noções de intenção de prejudicar e de abuso de poder – começaram a se delinear na França de forma mais nítida. No contexto moderno, o termo violência e assédio tem sido frequentemente usado para descrever um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, indesejadas, intrusivas, invasivas na esfera íntima de segurança psicológica dos indivíduos. Essas condutas podem ocorrer em diversos ambientes: no trabalho, nos ambientes educacionais, nas ruas, e até nas relações interpessoais. Os atos que caracterizam o assédio moral são geralmente repetitivos, mas a recorrência não é uma condição para a sua configuração. Nesse sentido, existe inclusive uma referência para empresas, que é a Convenção nº 190 da OIT, que trata da eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho (artigo 1º, alínea a). Esse artigo define claramente que a violência e o assédio no mundo do trabalho podem ser oriundos de atos repetidos ou isolados, o que significa que um único ato pode ser suficiente para configurar uma situação de assédio ou violência. Mesmo que o Brasil não tenha ratificado ainda esta Convenção, ela é sem dúvida alguma um marco internacional muito importante a respeito do tema. Assim, a etimologia da palavra reflete a ideia de pressão e cerco, que é coerente com a forma como entendemos o assédio hoje: uma forma de pressionar, perseguir, constranger, humilhar, coagir, discriminar ou importunar alguém de maneira isolada e pontual ou prolongada no tempo. De forma mais específica, o que se vê no mundo corporativo é um conjunto de seis comportamentos principais, que podem ser individualizados e descritos como o modus operandi do assédio no trabalho.
Quais são estes comportamentos?
Em primeiro lugar eu colocaria a intenção de isolar a vítima. O intuito é exatamente enfraquecer a pessoa que se tornou alvo. O assediador frequentemente tentará isolar a vítima dos demais colegas, de chefes, de subordinados e até mesmo de outros stakeholders (consumidores, clientes, prestadores de serviço, fornecedores). Isso acontece por ordens diretas e também através de fofocas, difamação ou mesmo impedindo o trabalhador de participar de atividades em grupo. Na França existe uma expressão para caracterizar a situação de alguém que é fisicamente isolado em função de estar sofrendo assédio no trabalho: mettre em placard. No Brasil condicionou-se traduzir esse termo como “colocar alguém na geladeira” e não “no armário” conforme apontaria a tradução literal. Penso que o termo “geladeira” traz também a ideia de que não se trata apenas de um isolamento puramente, mas sim de uma verdadeira estagnação. Em segundo lugar, a desvalorização em seu ambiente de trabalho, seja através de críticas infundadas, atribuição de tarefas humilhantes ou mesmo pela negação de oportunidades de crescimento. Diminuir as conquistas da vítima como forma de depreciá-la também é uma possibilidade. Nesse sentido, percebe-se que a epidemia de Burnout tem íntima relação com a epidemia de assédio. Em terceiro lugar, os ataques pessoais no âmbito profissional. Além de ataques profissionais, o assediador pode fazer comentários ofensivos sobre a vida pessoal, aparência ou características da vítima na frente de outras pessoas, expondo o empregado. Em quarto lugar viria a intenção de intimidar. O assediador frequentemente utiliza táticas de intimidação, como gritos, ameaças veladas ou explícitas e comportamentos agressivos. Observa-se dessa forma o estilo passivo-agressivo e a inversão de culpa: não foi isso que eu disse…você entendeu mal. Em quinto lugar, mas não menos importante, citaria a manipulação psicológica. O assediador pode manipular situações para que a vítima pareça e até mesmo se sinta errada ou incompetente, o chamado gaslighting ou ainda para que ela se sinta culpada por problemas que não causou. Nesse sentido, são frequentes atitudes como: combinar algo em conversas privadas, mas não sustentar isso mediante outras pessoas; manipular a vítima através de ameaças veladas ou mentiras para fazê-la perder o controle; usar de brincadeiras e/ou piadas para ferir a vítima e, em caso de confrontação, dizer que foi só uma brincadeira, que a vítima é muito sensível, que leva tudo a sério. Ainda dentro do quesito da manipulação, o assediador pode igualmente dispensar tratamento diferenciado em prejuízo da vítima. Descobrir e explorar o chamado “Calcanhar de Aquiles” é um comportamento clássico no assédio: nesse sentido, os assediadores usam os pontos fracos da vítima para causar-lhes dor. É possível também que o assediador manipule as pessoas ao redor como forma de destruir a reputação da vítima, afastá-la dos demais e isolá-la. Omitir dados e/ou informações importantes para induzir a vítima ao erro é também relativamente frequente. Em sexto e último lugar, mencionaria o silenciamento. Em muitos casos, a vítima pode se sentir silenciada ou temerosa em denunciar o assédio, por medo de represálias ou por não acreditar que receberá apoio. Nesse sentido, a falta de segurança psicológica seria uma das principais causas dessa epidemia que se vive na atualidade. Em resumo, trata-se de uma forma de violência moral, psicológica e até mesmo financeira que pode ter consequências graves para a saúde mental e física de trabalhadores e que pode causar danos psicológicos graves.
E que consequências podem ter o assédio moral no trabalho?
A presença do assédio moral torna o ambiente de trabalho tóxico e hostil, o que pode afetar não apenas a vítima, mas também outros trabalhadores e stakeholders. As consequências específicas do assédio, em suas diversas formas, são prejuízos de ordem física, sexual, psicológica ou econômica. O assédio moral pode levar a vítima a desenvolver problemas psicológicos, como depressão, ansiedade e síndrome do pânico. Além destes danos, o assédio moral pode levar a problemas físicos relacionados ao estresse agudo e crônico tais como: insônia, dores de cabeça, hipertensão e doenças cardiovasculares, doenças autoimunes, compulsão alimentar e de outros tipos, obesidade, síndrome metabólica, dentre outros problemas relacionados ao estresse. É importante notar que essas situações podem ocorrer isoladamente ou em conjunto, e a frequência e gravidade do assédio podem variar. Evidentemente, pode ser desafiador prever, para cada tipo de assédio, quais seriam as consequências associadas. Dejours fala em patologias do assédio, sugerindo exatamente isto, que não se pode tentar prever o adoecimento ou consequência a partir do que aconteceu. Assim, o olhar da prevenção precisaria se voltar para a organização do trabalho, e não para as características individuais que possam levar a uma maior ou menor resiliência no enfrentamento de situações adversas estressantes.
Em dezembro de 2022 saiu uma Portaria incluindo item na NR 1 referente ao assédio sexual e outras formas de violência nas empresas. Poderia explicar melhor o que prevê a legislação do MTE hoje?
O Ministério do Trabalho e Emprego fez alguns avanços no que diz respeito às NRs. Por outro lado, a NR 17 sofreu algumas alterações durante o governo anterior, que reduziram um pouco seu alcance. Na época, o Ministério Público do Trabalho chegou a elaborar um parecer em defesa da NR 17, texto este que foi escrito por mais de um procurador e no qual usaram o meu livro em diversos momentos. Mesmo assim, um item que eu considerava um dos mais importantes foi suprimido. A NR 1, que trata das disposições gerais sobre Saúde e Segurança no Trabalho no Brasil, foi atualizada para incluir um Programa de Gerenciamento de Riscos Ocupacionais, que abrange a identificação de perigos e a avaliação e controle de riscos em todos os aspectos relacionados ao trabalho. Dentro do escopo do GRO, há uma atenção especial aos riscos psicossociais, que são fatores que podem afetar a saúde psicológica e o bem-estar dos trabalhadores, bem como a saúde organizacional. Tais riscos incluem, mas não se limitam a essas situações que podem estar presentes no trabalho: baixa valorização, estagnação na carreira, falta de apoio social com demandas familiares, dupla jornada, conflitos, assédio, sobrecarga, falta de apoio social ou reconhecimento, e conflitos éticos no trabalho, exposição a clientes ou grupos de consumidores, isolamento físico, dentre outros. A NR 1 e o Programa de Gerenciamento de Riscos, que faz parte do GRO, requerem que as empresas identifiquem e avaliem todos os tipos de riscos, incluindo os psicossociais. As empresas devem implementar medidas preventivas e protetivas para garantir que os trabalhadores não sejam expostos a condições que possam causar danos à sua saúde mental e física. Embora a NR 1 não mencione explicitamente o termo assédio, ela estabelece a base para que as empresas considerem todos os riscos que possam afetar a saúde dos trabalhadores, o que inclui o assédio moral e sexual como um risco psicossocial. As empresas são obrigadas a adotar uma abordagem sistemática para gerenciar esses riscos, o que implica em realizar avaliações de risco, planejar atividades preventivas, e monitorar a eficácia dessas medidas. Além disso, a NR 1 enfatiza a importância da participação dos trabalhadores no processo de gerenciamento de riscos, o que inclui a comunicação aberta sobre questões como o assédio e outros riscos psicossociais. Isso é fundamental para criar um ambiente de trabalho seguro e saudável, onde os trabalhadores se sintam confortáveis para reportar incidentes e preocupações sem medo de retaliação.
Então a alteração na CIPA, na NR 5, tem a ver com esta mudança na NR 1?
Sim, a partir dessa nova legislação, houve uma alteração na nomenclatura da CIPA, que passou a ser chamada de Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio, agora CIPA-A, refletindo a inclusão do combate ao assédio como uma de suas responsabilidades. Além disso, todas as Normas Regulamentadoras que possuem itens que incluem a CIPA foram alteradas para refletir essa nova responsabilidade. Outra novidade diz respeito à obrigatoriedade, para as empresas, de agora, por meio da CIPA-A, se tornarem obrigadas a desenvolver ações de combate ao assédio sexual e outras formas de violência, como o assédio moral. A legislação traz ainda a necessidade de serem incluídas regras de conduta nas normas internas e regulamentos das empresas, com ampla divulgação do conteúdo aos trabalhadores. Essas atualizações visam criar um ambiente de trabalho mais seguro e respeitoso, promovendo a saúde mental e o bem-estar dos funcionários.
Na sua avaliação empresas, profissionais de SST e CIPAs entenderam o que precisa ser feito?
Anos atrás cheguei a ser procurada para discutir a possibilidade de se ter uma NR que versaria apenas sobre os riscos psicossociais. Mas durante o governo anterior o avanço com a pauta trabalhista ficou bastante prejudicado e o caminho adotado pode não ter sido, talvez, o melhor, mas pelo menos algo foi feito. Quando digo “algo melhor” falo especificamente em relação à CIPA, algo que explicarei mais adiante. Certamente, as atualizações na legislação propõem um caminho mais estruturado para abordar o assédio moral e sexual nas empresas, mas também apresentam uma série de desafios. Particularmente sou contrária a essa atribuição mais recente dada à CIPA. As questões relacionadas a assédio frequentemente incluem abuso de poder. Me parece injusto esperar que a CIPA tenha que lidar com esse tema, a não ser de forma preventiva. A participação dos trabalhadores sempre é bem-vinda e apontada como necessária nas convenções da OIT. Porém, ela deve se dar muito mais no plano educativo e preventivo do que inquisitório e investigativo. E isso deve ser assim porque os membros da CIPA precisam ser protegidos e não podem, em hipótese alguma, ter a obrigação de tomar para si um ônus que é da empresa. Pela minha experiência em fiscalizações, os cipeiros que atuam de forma mais incisiva no que diz respeito a irregularidades, em muitos casos, sofrem assédio e perseguições. Esperar que possam atuar encaminhando denúncias me parece pouco razoável. Já os profissionais de SST precisam atuar na conscientização e na educação dos empregados sobre o que constitui assédio moral e sexual e como relatar incidentes, mas os desafios nesse sentido podem ser hercúleos, a depender do tamanho da empresa. Isso pode exigir treinamentos regulares efetivos, o que pode ser desafiador se quem capacita são os próprios profissionais de SST, caso eles não tenham tanta experiência e didática no assunto que, vale dizer, ainda é novo para muita gente. Uma obrigatoriedade que pesa sobre a empresa e que também representa um desafio é o tratamento das denúncias de forma confidencial. Essa e outras garantias precisam ser claras para que os empregados se sintam seguros para reportar casos de assédio. A propósito, as comissões que conduzirão essas investigações precisam atuar de forma imparcial e eficaz, o que pode ser difícil, especialmente se não houver um protocolo claro ou se houver preocupações sobre retaliação ou estigma associados à denúncia. Capacitei a Comissão de Investigação de Denúncias de Assédio e Discriminação da Defensoria Pública do Mato Grosso e desenvolvi um protocolo para atuação de forma independente. Na prática, tentei mostrar que nessas questões nunca existirão respostas prontas e certas e que será preciso aprender a pensar sobre estes problemas a fim de encaminhar soluções, proteger as vítimas e prevenir a recorrência de situações. Imagino que as organizações estão se adaptando com maior ou menor velocidade, mas os profissionais de SST terão ainda o desafio de avaliar a eficácia das políticas e práticas implementadas a fim de garantir que elas funcionam como pretendido e, se não, procederem aos ajustes necessários.
Há algum caso marcante na sua prática como AFT que acredita ter contribuído para que se preste mais atenção ao problema do assédio?
O caso mais marcante e emblemático da minha carreira foi uma fiscalização realizada em 2015 na Agência Previdência do Banco do Brasil em São Paulo. Ficou comprovado por farta documentação e também por depoimentos que o banco obrigava os gerentes a cometerem crimes embutindo produtos nas contas de clientes sem autorização. Caso o cliente reclamasse, a gerente determinava o depósito em dinheiro para simular o cancelamento e enganar novamente o cliente. Os trabalhadores que se recusaram ou que se mostraram insatisfeitos com a prática acabaram sendo ainda mais assediados. Nessa agência o percentual de adoecimentos era altíssimo e chegou a ocorrer um suicídio. Eu encaminhei um relatório de 300 páginas ao Ministério Público do Trabalho no qual havia 24 autos de infração lavrados durante o operativo. O MPT ajuizou o maior pedido de indenização por dano moral coletivo em uma Ação Civil Pública até aquela data, 440 milhões de reais, uma vez que as provas das condutas ilícitas eram inúmeras e robustas. Eu mesma cheguei a entrevistar todos os empregados dessa agência. O banco foi condenado em R$ 8 milhões em março deste ano. Outro caso emblemático aconteceu em 2018 quando fui testemunha em uma das ações individuais ajuizadas perante o INSS com o intuito de reconhecer o nexo com o trabalho (a CAT foi emitida pelo sindicato e o perito do INSS não a aceitou). A ação tinha por objetivo exatamente converter o tipo de benefício. No caso do empregado Terence de Carvalho (o principal denunciante), o assédio moral foi equiparado a um acidente de trabalho para todos os efeitos com base na fiscalização a partir dessa decisão da 6ª Vara de Acidentes de São Paulo. Foi a primeira vez que isso aconteceu na história da inspeção do trabalho e representou um marco para a Auditoria-Fiscal do Trabalho.
De que forma as empresas e profissionais de SST precisam atuar para prevenir os casos de assédio?
Em primeiro lugar, é preciso capacitar as pessoas que irão receber esse tipo de denúncia, assim como os empregados para que possam compreender do que se trata e, serem capazes de identificar e reportar as violências sofridas que não sejam tão óbvias. Gritos e humilhações ostensivas podem ser facilmente reconhecidos, mas, muitas pessoas desconhecem, por exemplo, o assédio praticado por meio de prerrogativas. Em outras palavras, é quando alguém é perseguido ou discriminado através de decisões que fazem parte do dia a dia. Alguns exemplos: distribuir os clientes ou mesmo alocar um empregado em uma unidade ou em outra. O problema se instala quando a motivação de fazer isso é a de perseguir ou de prejudicar alguém. Se uma pessoa sofre assédio e não tem com quem contar dentro da organização, essa situação não será vista como um risco ou como um problema. Porém, se uma pessoa sofre assédio e recebe todo apoio em uma eventual denúncia, além de ter a sensação de estar segura e estar ciente de que sérias providências foram tomadas, o ocorrido perde substancialmente o seu potencial de risco e dá lugar à manifestação de algo que todos nós buscamos quando nos vinculamos a uma organização: o apego seguro. Em segundo lugar, protocolos de segurança para todos os envolvidos precisam ser implementados e a efetividade dessas ações precisa igualmente ser monitorada. Se em uma empresa não existem denúncias, provavelmente as pessoas não se sentem seguras para denunciar. Por outro lado, se as denúncias são numerosas demais, a ponto de tornar difícil uma atuação mais pontual, é preciso aceitar que existem fatores de riscos psicossociais importantes prejudicando o meio ambiente do trabalho e criando um terreno fértil para que novos casos de assédio surjam de forma ininterrupta. Neste caso, a intervenção nos processos de trabalho se torna essencial. Honestamente, não vejo como tratar a questão do assédio de forma isolada de todas as outras questões que são afetas ao ambiente organizacional, sob pena de não conseguirmos ajudar efetivamente as empresas a desenvolverem ambientes de trabalho mais saudáveis e nos quais as pessoas sejam mais produtivas. Ainda será necessário que, notadamente os juristas, comecem a se dar conta de que a questão da saúde mental não é de modo algum redutível à luta contra os processos assediadores. O assédio moral começará então a ser visto como uma ilha, muito populosa, em um oceano de sofrimento.
De um modo geral como as organizações estão lidando com os riscos psicossociais nos ambientes de trabalho? Ou não estão lidando?
Falando do assédio, a grande maioria das empresas no Brasil não está lidando com o tema. Empresas pequenas e empresas familiares ainda não estão discutindo a questão internamente, com honrosas exceções. As empresas que estão lidando com a questão são as empresas maiores. As medidas que tenho visto serem tomadas são: implementação de canais de denúncia e designação de equipe responsável por investigações. Ocorre que, ainda que a empresa desenvolva ou até mesmo já tenha um protocolo relativo a assédio e discriminação, na prática, o que vejo é que existem pesos e medidas diferentes a depender de quem for o assediador. Nesse sentido, já tive notícia de um executivo ser expatriado como punição por ter assediado alguém. No Judiciário, a punição representada pela aposentadoria compulsória anda no mesmo sentido. Portanto, a demissão ou algum tipo de responsabilização mais importante acaba ficando para pessoas que trabalham na empresa, porém com um status não tão elevado. Em outras palavras, os processos não são isonômicos, não são transparentes e as regras e as respectivas punições não são claras. Quando se fala de riscos psicossociais, as dificuldades são ainda maiores e realmente trazem desafios para os profissionais de SST. Eu tenho para mim que uma nova cultura de identificação e prevenção de riscos precisa ser criada. O que se tinha de práticas voltadas para riscos físicos, químicos e biológicos não me parece aderente à realidade dos riscos psicossociais. Para citar um exemplo, o termo limite de tolerância usado para exposição a ruído ou a contaminantes não me parece funcionar para riscos psicossociais, tendo em vista que a percepção individual pode ser diferente, além de existir acúmulo e sinergia entre muitos deles. A gota que faz o copo transbordar aqui e ali pode ser muito diferente. E, muitas vezes, pode-se ver pessoas se descompensarem por questões aparentemente corriqueiras e simples, mas devido a um acúmulo de muitos anos de exposição a outros riscos naquela organização ou em outra. Além disso, penso que o protagonismo em torno da questão do assédio, em detrimento de um olhar mais amplo para os riscos psicossociais, tornou difícil a compreensão das problemáticas relacionadas ao sofrimento no trabalho. A forma reducionista de abordagem dessas questões tem sido uma tônica em vários países e, inclusive, no âmbito da Organização Internacional do Trabalho e no que prevê a Convenção nº 190. O argumento de que seria melhor iniciar a tutela da saúde mental de trabalhadores pela prevenção e enfrentamento do assédio, e não pelos riscos psicossociais, não me convence. Essa visão reducionista segundo a qual os riscos psicossociais não são olhados juntamente com a ocorrência de assédio leva a uma separação das consequências das tensões relacionadas ao trabalho de suas causas. Nessa esteira, vejo o assédio como um sintoma cuja eliminação pode trazer a falsa ideia de que a organização pode seguir da mesma forma e sobreviver sem maiores problemas a partir da responsabilização de um assediador. Existe uma expressão muito utilizada em francês e que encontra correspondência em português: comme si ne rien d’etait (como se nada tivesse acontecido). Essa expressão me parece dar conta de uma abordagem que busca a eliminação do assédio como sintoma. Nesse sentido, ainda vejo em muitos casos, a demissão da pessoa que denuncia e, posteriormente, a demissão do denunciado também. E assim, os problemas verdadeiros não são enfrentados.
A senhora publicou há algum tempo o livro “Riscos psicossociais e saúde mental do trabalhador: por um regime jurídico preventivo”. Qual foi seu recado?
Tive muita dificuldade em ter meu projeto de pesquisa quando iniciei o mestrado. O então coordenador da pós-graduação me disse: “seu projeto é de medicina, de psiquiatria, você não tem como levá-lo adiante no Direito”. Foi a professora Patrícia Bertolin quem me assumiu e me deu total liberdade para seguir minha intuição de mostrar as bases legais associadas à Psicopatologia do Trabalho no tratamento dos riscos psicossociais enquanto categoria de interesse essencial à tutela jurídica da saúde mental de trabalhadores. A obra foi escrita em 2010 e nela eu trouxe uma descrição dos riscos psicossociais, além de diversas classificações. Publiquei a primeira edição em março de 2015 e ela se esgotou rapidamente. Em 2018 revisitei uma parte em que falo sobre Burnout e apontei o fato de não existir um consenso sobre o Burnout ser uma entidade nosológica autônoma ou um subtipo de depressão. Foram apenas duas páginas de atualização, além de um prefácio do professor doutor Lenz Cabral. A segunda edição esgotou-se rapidamente também. A obra acumula mais de 400 citações no Brasil e no exterior e tem sido uma referência importante sobre o tema dos riscos psicossociais e suas consequências sobre a saúde mental. O referencial adotado e que sempre serviu de pano de fundo tanto para minhas pesquisas, como para minha atuação acadêmica e profissional é a Psicodinâmica do Trabalho. Tomei a decisão de não mais atualizá-la por alguns motivos. O principal deles é o fato de que no livro descrevo uma realidade que já é um pouco diferente e que tende a se modificar ao longo dos próximos anos. Penso que mantê-lo como está reserva seu valor histórico. Uma atualização não seria possível sem descaracterizar aquela dissertação apresentada em 2010, que poderia ter sido muito bem uma tese, tamanho o avanço que representou no universo de publicações jurídicas transdisciplinares à época. Ainda pretendo fazer novas tiragens do livro, mas a ideia é mantê-lo sem nenhuma alteração. Ainda pretendo escrever outros livros, talvez um sobre Burnout, agora que me formei em Medicina. Esse tem sido um tema recorrente na mídia e em muitas mensagens que recebo até mesmo de advogados especializados em doenças ocupacionais. Sinto que poderia contribuir com meus pontos de vista em uma discussão saudável e não política sobre o tema.
Gostaria de acrescentar algo mais aos leitores da Proteção?
É crucial que as empresas reconheçam a gravidade do assédio moral e tomem medidas para prevenir e combater essa prática. No entanto, me parece fundamental compreender e atuar para modificar as condições ambientais que estão concorrendo para a criação de um terreno fértil para o surgimento de casos de assédio. Não se pode prescindir de um olhar igualmente cuidadoso para as características peculiares dos processos de trabalho que podem estar por trás dos casos identificados. Certa vez uma pessoa me relatou que uma empregada que atuava em um setor em que a demanda emocional era muito alta, estava apresentando febres inexplicáveis. Se esta servidora começa a se ausentar para cuidar de sua saúde em um setor de alta demanda, as chances de em algum momento começar a sofrer algum tipo de assédio por conta das ausências, bem como por eventuais afastamentos, aumenta de forma considerável. Portanto, entender essas dinâmicas me parece o único caminho possível para que se tenha alguma mudança futura no sentido de as organizações começarem a se tornar mais produtivas fomentando espaços mais seguros para as pessoas. A conscientização e a educação são ferramentas essenciais para criar ambientes de trabalho saudáveis e respeitosos para todos os empregados. As mudanças não são de alto custo e os benefícios delas advindos podem significar redução de diversos custos dentre os quais os gastos com ações trabalhistas e o custo indireto com absenteísmo e presenteísmo também.
Ref.: Revista Proteção, Saúde e Segurança do Trabalho (Digital): O assédio é apenas um sintoma Editora Proteção Publicações. Ed. 383, p. 10, novembro/2023.