Experiência desafiadora
SST em órgãos públicos, engajamento e representatividade da categoria estão na pauta do presidente da ANEST
Entrevista à jornalista Daniela Bossle
Desafios não têm faltado ao engenheiro eletricista e de Segurança do Trabalho, Milton Alves Ribeiro, 56, natural de Goiânia/GO. Hoje com larga experiência no setor público, ele se deparou no início de sua carreira com uma “epidemia” de LER DORT nos digitadores do órgão estatal em que trabalhava. O fato acabou lhe motivando para cursar a especialização em Engenharia de Segurança do Trabalho de onde conseguiu trazer a solução para o problema enfrentado na empresa.
Ele não parou mais e migrou de vez para a área atuando a frente de SESMTs de empresas de transportes, usinas de álcool e açúcar, hospitais e como consultor. Desde 2018 focou suas atividades no serviço público coordenando SESMTs de diferentes órgãos no Estado de Goiás numa experiência pioneira se comparada a órgãos públicos de outros estados. Também é professor e atualmente coordena o curso de especialização em Engenharia de Segurança do Trabalho da PUC/GO. Ribeiro hoje é também o presidente da ANEST (Associação Nacional de Engenharia de Segurança do Trabalho) que realiza neste mês o seu congresso anual, o CONEST.
Na entrevista ele fala de como é fazer SST nos órgãos públicos e suas dificuldades. O papel dos profissionais da área frente aos novos modos de trabalho e o engajamento e representatividade dos engenheiros de segurança em todo o país são abordados por ele. Recentemente tornou-se deficiente visual, o que lhe proporcionou também uma percepção apurada da responsabilidade dos prevencionistas sobre a inclusão de PcDs nos ambientes de trabalho.
O senhor iniciou sua formação na área de engenharia elétrica, e depois cursou Engenharia de Segurança do Trabalho? O que lhe motivou a fazer a especialização? Há quantos anos o senhor está na área? Sim, atuei primeiramente na área de engenharia elétrica, com foco na área de TI, no período que exercia a função de analista de sistemas da Saneago. Na empresa, tínhamos um grande volume de digitação para dar baixa nas contas de água dos usuários dos Estados de Goiás e Tocantins. Ainda não havia ocorrido a separação administrativa dos estados naquela época. Isso levou os nossos digitadores ao adoecimento por LER/DORT. Após solicitar ajuda ao SESMT da empresa, um dos profissionais disse que era um problema de ergonomia, que poderia ser solucionado após a realização de uma Análise Ergonômica do Trabalho que poderia ser realizada por um engenheiro de Segurança do Trabalho com conhecimento em ergonomia. Isto despertou minha curiosidade e me motivou a fazer a especialização em Engenharia de Segurança do Trabalho e assim conseguir levar a solução do problema para a empresa. Durante o curso, identifiquei as possíveis causas dos adoecimentos, que eram as exigências de digitação acima do recomendado pela NR 17. A solução adotada foi a implementação de códigos de barras nas contas para eliminar toda a digitação referente à baixa de contas, partindo para o reaproveitamento da mão de obra dos digitadores em outras áreas da empresa. A partir desse desafio passei a gostar muito da área de Segurança e Saúde do Trabalho, o que me levou a mudar de área de atuação, e permanecer nela até hoje. Estou há mais de 30 anos atuando como engenheiro de Segurança do Trabalho.
Olhando seu currículo percebe-se que o senhor teve experiências em diferentes setores da economia como na área de transportes, em usina de álcool e açúcar, na indústria, em consultorias e no serviço público. Esta sua vivência em diferentes áreas enriqueceu sua experiência na aplicação da boa Engenharia de Segurança do Trabalho?
Sem dúvida o profissional que sou hoje é o somatório das experiências de todos esses locais em que trabalhei. Em cada um pude experimentar e aprender temas específicos de SST e que foram se complementando ao longo dos anos. Também contribuiu para o meu enriquecimento como profissional de Segurança do Trabalho a minha experiência como docente, que exige do professor a aplicação e o constante aprimoramento do conhecimento.
No serviço público, setor em que atuou por último, o senhor esteve à frente de SESMTs de diferentes órgãos do Governo do Estado de Goiás. Na maioria dos órgãos públicos brasileiros a SST ainda não é obrigatória, correto? Sua experiência foi algo pioneiro?
Correto. Embora a Constituição Federal, no artigo sétimo, inciso XXII, exija que todo trabalhador, tanto do setor público quanto do privado, seja amparado por normas de Segurança e Saúde no Trabalho, a implementação destas normas específicas no serviço público ainda carece de regulamentação própria. Em muitos órgãos públicos, tanto na esfera federal, quanto estadual e municipal, a aplicação da SST não é padronizada, uma vez que a legislação trabalhista voltada à Segurança e Saúde do Trabalho, como a CLT, se aplica predominantemente ao setor privado. No entanto, algumas normas específicas para o serviço público vêm sendo discutidas e implementadas gradativamente. Eu não diria que minha experiência profissional é pioneira, mas o Estado de Goiás, sim, foi pioneiro ao implementar uma legislação específica sobre SST para servidores públicos, por meio da Lei Ordinária nº 19.145, de 29 de dezembro de 2015. Esta Lei estabelece a Política de Segurança e Saúde no Trabalho dos Servidores Públicos no âmbito da Administração Pública direta e indireta do Poder Executivo. Enquanto as normas próprias ainda estão sendo desenvolvidas, as Normas Regulamentadoras são aplicadas de maneira supletiva e provisória, com as devidas adaptações necessárias.
Fale sobre os desafios que envolveram a implementação da SST no serviço público de Goiás.
Os desafios enfrentados na implementação de políticas de SST no serviço público são complexos. A burocracia do setor público exige que os processos administrativos passem por várias etapas e níveis de aprovação, o que pode atrasar a execução de ações importantes. Outro obstáculo é o planejamento orçamentário, que demanda a inclusão prévia de recursos nas leis orçamentárias. Isto, somado ao longo processo de licitação para aquisição de materiais e bens, faz com que a compra de equipamentos de proteção e outros itens essenciais seja demorada e complicada. Além disto, as mudanças de governo a cada quatro anos representam um desafio adicional, já que as trocas de gestão podem trazer novas prioridades, impactando diretamente a continuidade de políticas e projetos de SST, que resultam, muitas vezes, na descontinuidade das ações já planejadas ou em andamento.
O senhor enfrentou este tipo de problema em sua gestão? Pode citar alguma experiência que lhe marcou neste período?
Sim, claro! Na época em que eu era coordenador de Engenharia de Segurança do Trabalho da GEQUAV (Gerência de Qualidade de Vida Ocupacional) do Estado de Goiás, nós ficamos aproximadamente dois anos, desde a identificação das necessidades até a execução do pregão digital, para conseguir a contratação de um sistema de gestão de SST, que nos permitisse fazer os envios dos eventos do eSocial. Este sistema foi especificado para que permitisse a integração com sistemas próprios do Estado de Goiás de gestão de pessoas e folha de pagamento. Foi um grande desafio conseguir conciliar sistemas disponíveis no mercado e a possibilidade de adaptação e ajustes para conversar com o sistema do estado, pois, não teríamos tempo hábil para fazer o desenvolvimento próprio e cumprir o cronograma do governo federal na implantação do e-social. Ainda estamos realizando ajustes, mas conseguimos cumprir os prazos para envio dos eventos do serviço público. Lembrando que temos no nosso quadro aproximadamente 90 mil servidores sendo, mais de 40 mil só da Secretaria de Educação. Dá para entender um pouco sobre o grande desafio da Segurança e Saúde no Trabalho no serviço público?
Sim. E o senhor vislumbra a possibilidade de trazer a SST para os órgãos públicos de todo o país? Quais seriam os caminhos para isso acontecer?
É perfeitamente possível vislumbrar a ampliação da SST para todos os órgãos públicos do país, e considero isso extremamente importante. A proteção e o cuidado com a saúde e segurança dos trabalhadores são fundamentais, independentemente de estarem no setor público ou privado. Implementar a SST em todos os órgãos públicos ajudaria a reduzir riscos, prevenir acidentes e promover um ambiente de trabalho mais seguro e saudável para os servidores. O caminho para isso é a criação de uma legislação específica, assim como Goiás fez. Outros estados, municípios e o governo federal precisariam criar leis específicas de SST para o serviço público estabelecendo diretrizes claras. Vale ressaltar que já temos passos dados em direção a essa conquista. O primeiro deles é que o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1.068, em 9 de agosto deste ano, reconheceu a aplicação das Normas Regulamentadoras à Administração Pública Federal, Estadual e Municipal, bem como afirmou a competência da Justiça do Trabalho para processar as Ações Civis Públicas contra o Poder Público, tendo como causa o pedido de normas de Saúde, Higiene e Segurança do Trabalho. Em segundo lugar chamo atenção para o Projeto de Lei n° 3.516, de 2024, do senador Flavio Azevedo, que dispõe sobre os Serviços Especializados em Segurança e Medicina do Trabalho na rede pública. O PL foca apenas nos servi-ços de saúde , o que é uma pena, pois caracteriza privilégio a um setor público em detrimento de outros. Mas de qualquer forma vale citar esta importante iniciativa. Outro ponto relevante é a criação da frente parlamentar. Atualmente há iniciativas regionais, como a Frente Parlamentar de Defesa da SST no Distrito Federal, criada em 2023. Esta frente foi resultado de esforços de sindicatos e associações locais para fortalecer a implementação de políticas de SST no setor público. Dentre as entidades regionais que participaram ativamente da sua criação está a Abraest, a Associação Brasiliense de Engenharia de Segurança do Trabalho, filiada à ANEST. E por último, dizer a você que o tema será tratado no 26º CONEST em Goiânia/GO, onde serão propostas ações para a criação da legislação de SST em âmbito nacional. O evento acontece neste mês de novembro.
Como está sendo sua experiência como presidente da ANEST? Quais os desafios de gerir uma entidade nacional na área da Engenharia de Segurança do Trabalho?
Como presidente da ANEST minha experiência tem sido desafiadora. Liderar uma tão grande entidade nacional voltada para a Engenharia de Segurança do Trabalho exige um esforço contínuo para equilibrar a representação dos interesses dos profissionais com ações concretas de promoção da cultura de prevenção nos ambientes de trabalho. Esse esforço inclui o fortalecimento de parcerias, a participação para atualização constante das normativas de segurança, a capacitação dos engenheiros, a realização de eventos regionais e nacionais, eaampliação da abrangência da ANEST para melhor atender as necessidades da categoria. Um dos principais desafios é manter o engajamento e a representatividade dos engenheiros de Segurança do Trabalho em todo o Brasil, conciliando diferentes realidades regionais. Nesse sentido destacamos as recentes realizações da entidade, como o 5º ENEST realizado em Curitiba/PR, um evento presencial de grande sucesso com mais de 400 participantes, que reuniu especialistas e profissionais para discutir as tendências e desafios da Segurança do Trabalho. Além disso, promovemos a primeira edição da Semana dos Regionais, evento on-line, transmitido pela ANEST TV com mais de 30 mil acessos, que fortaleceu a presença da entidade nas diversas regiões do país, ampliando a integração entre as entidades filiadas e incentivando o desenvolvimento de novas iniciativas locais. Esses eventos reforçam nosso compromisso com a expansão e a valorização da Engenharia de Segurança no Brasil.
O mundo do trabalho vem mudando rapidamente trazendo novas características como a inteligência artificial, o trabalho on-line, o trabalho por aplicativos entre outras transformações. Com isso muda também o panorama dos riscos nestas novas formas de se trabalhar. Como adaptar a Engenharia de Segurança do Trabalho a este novo momento?
A inteligência artificial, o home office e o trabalho por aplicativos impactam de diferentes formas a Segurança e a Saúde no Trabalho. A Inteligência Artificial pode automatizar tarefas perigosas e prever acidentes, mas também gera estresse ao substituir funções humanas e criar dependência tecnológica. No home office, há flexibilidade, mas problemas de ergonomia e isolamento social podem surgir. Já motoristas de aplicativos enfrentam riscos de acidentes e estresse. Para enfrentar esses desafios, a Engenharia de Segurança deve atuar constantemente para a adaptação de normas e práticas que equilibrem tecnologia, saúde física e bem-estar psicossocial priorizando sempre a prevenção.
O senhor revelou a respeito de sua deficiência visual, portanto, vem sentindo “na pele” como é ter uma deficiência e as dificuldades de se adaptar às exigências do mercado de trabalho. Qual sua deficiência e como o senhor vem se adaptando a esta nova realidade?
Há mais de 10 anos percebi que minha visão vinha declinando, mas achava que era apenas uma simples troca de lentes que ocorria anualmente. Em 2020 realizei uma consulta com especialista em retina que me diagnosticou com uma degeneração da retina de origem genética, que se inicia após os 40 anos de idade. Até então a doença vinha evoluindo lentamente, mas em 2023 houve uma aceleração me levando a perder a capacidade de leitura do olho direito e neste ano, em abril, perdi a capacidade de leitura do olho esquerdo também. Desde então venho passando por readaptação no meu dia a dia, estou realizando curso para aprendizagem de Braile, orientação e mobilidade com bengala para cego, operação de computador e celular utilizando apenas a audição, uso de aplicativos de Inteligência Artificial que me auxiliam no dia a dia, principalmente para leituras e interpretação de documentos em PDF, como Normas Regulamentadoras e reconhecimento e interpretação de imagens, o chamado OCR, reconhecimento ótico de caracteres. Com tudo isso, o desafio para a condução da ANEST tem aumentado, haja vista que tudo o que fazemos necessita da visão. Mas tenho conseguido superar as dificuldades com o conhecimento adquirido e a ajuda e parceria dos diretores da ANEST.
Aproveitando que estamos falando em inclusão, ela vem sendo um tema cada vez mais presente nas organizações. Em sua opinião a inclusão deve integrar a área de atuação dos profissionais de SST? Eles estão preparados?
Na minha percepção a inclusão já é integrada à área de SST, desde que se faça uma correta interpretação das normas regulamentadoras. O item 17.1.1 da NR 17 diz que deve haver a adaptação das condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores de modo a proporcionar conforto, segurança, saúde e desempenho eficiente no trabalho. Este item indica que nós, profissionais de SST, temos que proporcionar a adaptação do trabalho ao trabalhador, e, portanto, sendo ele Pessoa com Deficiência, o posto de trabalho e todas as atividades deverão estar devidamente adaptadas às suas necessidades. Já na integração deste funcionário quando ele ingressa na empresa devemos levar em consideração todas as suas dificuldades promovendo uma capacitação que lhe permita executar as suas atividades com dignidade e satisfação.
Ref.: Revista Proteção, Saúde e Segurança do Trabalho (Digital): Experiência desafiadora Ed. 395, p. 12, outubro/2024.